Teorema de Stokes
O teorema de Stokes é mais um resultado que pode ser considerado como uma extensão do teorema de Green ou da regra de Barrow. Da mesma forma que fizemos para o teorema da divergência, verificaremos a fórmula que é garantida pelo teorema em circunstâncias particulares muito simples e discutiremos a estratégia da sua generalização e as dificuldades que encontramos. O teorema vai garantir a validade da igualdade \begin{equation}\iint_S \rot H\cdot\nu \, dS = \oint_L H\cdot dr\label{28:stokes}\end{equation} em que $S$ é uma variedade-2 com bordo $L$ e orientável com normal unitária contínua $\nu=(\nu_x, \nu_y, \nu_z)$ em $\mathbb{R}^3$, $H=(P,Q,R):\overline{S}\subset\mathbb{R}^3\to \mathbb{R}^3$ é um campo de classe $C^1(\overline{S})$, \[\rot H=\left(\frac{\partial R}{\partial y}-\frac{\partial Q}{\partial z}, \frac{\partial P}{\partial z}-\frac{\partial R}{\partial x}, \frac{\partial Q}{\partial x}-\frac{\partial P}{\partial y}\right),\] e o sentido em que se percorre $L$ e a normal unitária $\nu$ estão relacionados pela regra da mão direita (note que foram indicados a itálico termos que ainda temos de esclarecer minimamente).
Exemplo (Verificação da igualdade do teorema de Stokes no caso em que $S$ é uma vizinhança de coordenadas descrita explicitamente por uma função de classe $C^2$ e $H$ só tem uma coordenada não nula). Seja $V\subset\mathbb{R}^2$ um aberto limitado cuja fronteira $\partial V=C$ é uma linha fechada seccionalmente $C^1$ em $\mathbb{R}^2$, $h:\overline{V}\to \mathbb{R}$ uma função de classe $C^2(\overline{V})$, \begin{align*}S &=\{(x,y,z)\in\mathbb{R}^3: (x,y)\in V, z=h(x,y)\}, \\ L&=\{(x,y,z)\in \mathbb{R}^3: (x,y)\in C, z=h(x,y)\},\end{align*} $H=(0,0,R):\overline{S}\to\mathbb{R}^3$, $R\in C^1(\overline{S})$. Nesta situação, considerando que $\nu$ tem terceira coordenada positiva e $L$ é percorrida no sentido directo do ponto de vista de um observador situado em $z=+\infty$, ($\ref{28:stokes}$) reduz-se a \[\iint_{S}\frac{\partial R}{\partial y}\nu_x - \frac{\partial R}{\partial x}\nu_y\, dS= \oint_L R\, dz.\] Iremos verificar a igual reduzindo o integral de linha a um integral no plano $xy$, aí aplicando o teorema de Green e finalmente notando que a expressão obtida corresponde ao integral de superfície.
Suponhamos que $C$ é parametrizada por $\alpha(t)=(x(t),y(t))$, $t\in [0,1]$, $\alpha\in C^1([0,1])$. Temos \begin{align*}\oint_L R\, dz & =\int_0^1 R(\alpha(t),h(\alpha(t))) \frac{d}{dt}(h(\alpha(t))\, dt \\ & = \int_0^1 R(\alpha(t),h(\alpha(t)))) \left(\frac{\partial h}{\partial x}(\alpha(t)) x'(t)+\frac{\partial h}{\partial y}(\alpha(t)) y'(t)\right)\, dt \\ &= \oint_C \left(R(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial x}\right)\, dx + \left(R(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial y}\right)\, dy \end{align*} Agora aplicamos o teorema de Green no plano \begin{align*}& \oint_C \left(R(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial x}\right)\, dx + \left(R(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial y}\right)\, dy \\ & = \iint_V \frac{\partial}{\partial x}\left(R(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial y}\right) - \frac{\partial}{\partial y} \left(R(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial x}\right)\, dx\, dy \\ & \begin{split}= & \iint_V \frac{\partial R}{\partial x}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial y} + \frac{\partial R}{\partial z}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial x}\frac{\partial h}{\partial y} + R(x,y,h(x,y)) \frac{\partial^2 h}{\partial x \partial y}\\ & - \frac{\partial R}{\partial y}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial x} - \frac{\partial R}{\partial z}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial y}\frac{\partial h}{\partial x} - R(x,y,h(x,y)) \frac{\partial^2 h}{\partial y \partial x} \, dx\, dy \end{split} \\ & \mathtip{=}{h\in C^2} \iint_V \frac{\partial R}{\partial x}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial y} - \frac{\partial R}{\partial y}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial x} \, dx\, dy \end{align*} e rearranjamos a última expressão para a podermos interpretar como um integral de superfície em $S$ calculado via uma representação explícita $V\ni (x,y)\mapsto (x,y,h(x,y))$ em que a normal unitária a $S$ é $\pm \left(-\frac{\partial h}{\partial x}, -\frac{\partial h}{\partial y}, 1 \right)/\sqrt{1+\left(\frac{\partial h}{\partial x}\right)^2+\left(\frac{\partial h}{\partial y}\right)^2}$ \begin{align*}& \iint_V \frac{\partial R}{\partial x}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial y} - \frac{\partial R}{\partial y}(x,y,h(x,y)) \frac{\partial h}{\partial x} \, dx\, dy \\ & =\iint_V \left(\frac{\partial R}{\partial y},-\frac{\partial R}{\partial x}, 0\right)\cdot \left(-\frac{\partial h}{\partial x}, -\frac{\partial h}{\partial y}, 1 \right) \, dx\, dy \\ & = \iint_{S}\frac{\partial R}{\partial y}\nu_x - \frac{\partial R}{\partial x}\nu_y\, dS \end{align*} em que deve notar a escolha de sentido da normal que é consequência da aplicação do teorema de Green. Note (veja a figura) que para um observador sobre $S$, orientado dos pés para a cabeça como a normal, e perto de $L$, esta linha aparenta localmente ser percorrida no sentido directo. Tal constitui a regra de orientação popularizada em Física e Engenharia como a “regra da mão direita” para verificarmos a coerência de orientação de linhas e superfícies ao aplicarmos o teorema de Stokes.
Fim de exemplo.
Note que falaremos de bordo de uma superfície em $\mathbb{R}^3$, por analogia com o exemplo em que consideramos $L$ como o bordo de $S$. O bordo será a imagem de uma ou mais linhas limitando um aberto $U$ onde estão definidos os parâmetros através de uma representação paramétrica $C^1(\overline{U})$ que descreve a superfície (ou parte dela). Exigimos à representação paramétrica as propriedades exigidas às representações paramétricas na definição de variedade-$2$ em $\mathbb{R}^3$ num aberto contendo $\overline{U}$.
Relembramos que a superfície se diz orientável se existir uma normal unitária contínua sobre a superfície. Tal é nitidamente o caso no exemplo anterior.
Uma questão mais delicada relativamente ao exemplo é termos suposto a superfície de classe $C^2$. O resultado continua válido se a superfície for de classe $C^1$ mas abordar o argumento de aproximação necessário está para além dos objectivos do curso.
Exercício (Interpretação geométrica do rotacional). Podemos obter, de uma forma análoga ao que fizemos para o operador $\div$, o rotacional como limite de quocientes de integrais de linha e áreas de superfície. Seja $U\subset\mathbb{R}^3$ um aberto, $\boldsymbol{x}_0\in U$, $\rho\gt 0$ tal que $B_\rho(\boldsymbol{x}_0)\subset U$, $\nu$ um vector unitário de $\mathbb{R}^3$ e $F:U\to \mathbb{R}^3$ uma função de class $C^1(U)$. Definimos $D(\boldsymbol{x}_0,\rho, \nu)$ como sendo o círculo de raio $\rho$ centrado em $\boldsymbol{x}_0$ e com normal unitária $\nu$. Se a circunferência de $D(\boldsymbol{x}_0,\rho, \nu)$, que designaremos por $\partial D(\boldsymbol{x}_0,\rho, \nu)$, for percorrida uma vez de acordo com a regra da mão direita relativamente a $\nu$ por um caminho $r$, mostre que \[\lim_{\rho\to 0}\frac{\oint_{\partial D(\boldsymbol{x}_0,\rho, \nu)}F\cdot dr}{\pi \rho^2} = \rot F(\boldsymbol{x}_0)\cdot \nu.\] Fim de exemplo.
O exemplo seguinte ilustra como tirar partido do teorema de Stokes para evitar cálculos de integrais de linha ou de fluxos de rotacionais relativamente complexos. Vai ser essencial identificar correctamente a relação entre a superfície, o seu bordo, o sentido em que este é percorrido e o sentido da normal à superfície a considerar.
Exemplo. Consideramos a superfície $S\subset\mathbb{R}^3$ descrita parametricamente por \[ r(\theta,t)=\begin{cases}x(\theta,t)=t\theta\cos \theta, \\ y(\theta,t)=t\theta\sen \theta ,\\ z(\theta,t)=t\theta, \end{cases}\]
com $t\in [0,1]$ e $\theta\in [0,2\pi]$, e a linha $L$ descrita parametricamente por $\alpha(s)=(s\cos s, s\sen s, s)$, $s\in [0,2\pi]$.
Consideramos também um campo vectorial $G:\mathbb{R}^3\to\mathbb{R}^3$ definido por $G(x,y,z)=(x-y, y-z, z-x)$.
Sendo $\nu$ uma normal unitária contínua sobre $S$ com terceira coordenada positiva, pretendemos calcular \[\iint_S \rot G\cdot \nu\, dS - \int_L G\cdot d\alpha\] e em que $L$ é percorrido no sentido induzido pela sua parametrização.
Vamos ter como objectivo tentar determinar se a consideração do teorema de Stokes permite simplificar os cálculos. Comecemos por notar que $L$ não é uma linha fechada pois $\alpha(0)=(0,0,0)$ e $\alpha(2\pi)=(2\pi,0,2\pi)$. Para determinar todo o bordo de $S$ notamos que este será igual a $r(\partial([0,2\pi]\times [0,1]))$, isto é, o transformado por $r$ da fronteira do rectângulo $[0,2\pi]\times [0,1]$, que também inclui o segmento de recta $C$ unindo $(0,0,0)$ a $(2\pi, 0, 2\pi)$.
Para o bordo de $S$ ser percorrido consistentemente com o sentido determinado pelo teorema de Stokes, verificamos que o segmento $C$ deverá ser percorrido no sentido $(2\pi, 0, 2\pi)$ para $(0,0,0)$, algo que pode ser obtido com a parametrização $\beta(t)=(2\pi-t, 0, 2\pi-t)$, $t\in[0,2\pi]$. Conclui-se assim que \begin{align*} & \iint_S \rot G\cdot \nu\, dS - \int_L G\cdot d\alpha = \int_C G\cdot d\beta \\ & =\int_0^{2\pi}(2\pi-t, -2\pi+t , 0)\cdot (-1, 0, -1)\, dt =-2\pi^2.\end{align*} Fim de exemplo.
Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 08/06/2020 12:32:52.