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Cálculo Diferencial e Integral II

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Estrutura vectorial, euclidiana e métrica de \(\mathbb{R}^n\)

\(\mathbb{R}^n\) com a sua estrutura de espaço vectorial real e espaço com um produto interno já deve ser familiar do estudo de Álgebra Linear. Revemos os conceitos mais importantes e os resultados fundamentais tendo em vista a análise de alguns exemplos dos seus subconjuntos e de funções definidas em subconjuntos de \(\mathbb{R}^n\) com valores em \(\mathbb{R}^m\).

Os elementos de \(\mathbb{R}^n\), \(n\)-uplos de números reais (que são designados como coordenadas do vector), serão designados como pontos ou vectores de \(\mathbb{R}^n\) e representados na forma \( \boldsymbol{a}=(a_1,a_2,\dots,a_n) \). Usaremos \(\boldsymbol{0}\) para o vector nulo num qualquer espaço vectorial (distinto de $\mathbb R$ ou $\mathbb C$) que, neste caso, corresponde ao vector com todas as coordenadas nulas.

O produto de um escalar \(\alpha\in\mathbb{R}\) pelo vector \( \boldsymbol{a} \) corresponde a \[ \alpha \boldsymbol{a} = (\alpha a_1,\alpha a_2,\dots, \alpha a_n), \] a adição de \(\boldsymbol{a}\) com um vector  \(  \boldsymbol{b}=(b_1,b_2,\dots,b_n)\) corresponde a \[\boldsymbol{a} + \boldsymbol{b} = (a_1 + b_1 ,a_2 + b_2 ,\dots, a_n + b_n).\]

soma de vectores
Adição de vectores pela regra do paralelogramo
Mais detalhes: $\mathbb{R}^n$ como exemplo de espaço vectorial.

$\mathbb{R}^n$ é um espaço vectorial de dimensão finita sobre o corpo dos reais relativamente às operações de adição de vectores e produto de um vector por um escalar que recordámos atrás. Mais detalhadamente ser um espaço vectorial sobre $\mathbb R$ significa que se verificam as propriedades 1-8 abaixo:

  1. A adição de vectores é associativa, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a},\boldsymbol{b},\boldsymbol{c}\in\mathbb{R}^n}\quad \boldsymbol{a} + (\boldsymbol{b} + \boldsymbol{c})= ( \boldsymbol{a} + \boldsymbol{b}) + \boldsymbol{c}$.
  2. A adição de vectores é comutativa, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a},\boldsymbol{b} \in\mathbb{R}^n}\quad \boldsymbol{a} + \boldsymbol{b}= \boldsymbol{b} + \boldsymbol{a}$.
  3. Existe um elemento de $\mathbb{R}^n$, o vector nulo $\boldsymbol{0}=(0,\dots,0)$, que é elemento neutro da adição de vectores, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a}\in\mathbb{R}^n}\quad \boldsymbol{a} + \boldsymbol{0} = \boldsymbol{a}$.
  4. Para todo elemento de $\mathbb{R}^n$ existe o seu simétrico, obtido por mulitiplicação pelo escalar $-1$, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a}\in\mathbb{R}^n}\quad \boldsymbol{a} + (-\boldsymbol{a}) = \boldsymbol{0}$.
  5. Para todo elemento de $\mathbb{R}^n$ o seu produto pelo escalar $1$ é ele próprio, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a}\in\mathbb{R}^n}\quad 1 \boldsymbol{a} = \boldsymbol{a}$.
  6. O produto de escalares é compatível com o produto de um escalar por um vector, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a}\in\mathbb{R}^n}\forall_{\alpha,\beta\in\mathbb{R}}\quad (\alpha\beta) \boldsymbol{a} = \alpha (\beta \boldsymbol{a})$.
  7. O produto de um escalar por um vector é distributivo relativamente à adição de vectores, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a},\boldsymbol{b}\in\mathbb{R}^n}\forall_{\alpha\in\mathbb{R}}\quad \alpha (\boldsymbol{a} + \boldsymbol{b}) = \alpha \boldsymbol{a} + \alpha\boldsymbol{b}$.
  8. O produto de um escalar por um vector é distributivo relativamente à adição de escalares, isto é, $\forall_{\boldsymbol{a}\in\mathbb{R}^n}\forall_{\alpha,\beta\in\mathbb{R}}\quad (\alpha + \beta) \boldsymbol{a} = \alpha \boldsymbol{a} + \beta\boldsymbol{a}$.

A dimensão de $\mathbb{R}^n$ ser finita e igual a $n$ significa que podemos escolher $n$ vectores de $\mathbb{R}^n$ linearmente independentes tais que as suas combinações lineares permitem obter qualquer vector de $\mathbb{R}^n$. Tal conjunto de $n$ vectores diz-se ser uma base para $\mathbb{R}^n$. Em particular podemos escolher  os $n$ vectores em que uma coordenada é $1$ e as restantes $0$. Tal base designa-se base canónica de $\mathbb{R}^n$.

Não é objectivo deste texto rever o conceito de espaço vectorial exaustivamente. Recomenda-se a consulta de um texto de introdução a Álgebra Linear (por exemplo [1]).

Exercício. Verifique que as funções reais de variável real integráveis no intervalo $[0,1]$, com a adição de funções e o produto por um número real, constituem um espaço vectorial real de dimensão infinita.

O produto interno de \(\boldsymbol{a}\) por um vector \(\boldsymbol{b}=(b_1,b_2,\dots,b_n)\) corresponde a \[ \boldsymbol{a} \cdot \boldsymbol{b} = a_1 b_1 + a_2 b_2+\dots +a_n b_n = \sum_{k=1}^n a_k b_k. \]

Mais detalhes: $\mathbb{R}^n$ como exemplo de espaço com um produto interno.

Em geral um espaço vectorial real $V$ com vector nulo $\boldsymbol{0}$ e munido de uma aplicação $V\times V \ni (\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b})\mapsto \boldsymbol{a}\cdot \boldsymbol{b}\in\mathbb{R}$ diz-se um espaço com um produto interno definido por $\cdot$ se:\begin{align*}& \forall_{\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b}\in V} \quad \boldsymbol{a} \cdot \boldsymbol{b} = \boldsymbol{b} \cdot \boldsymbol{a}, \\ &\forall_{\alpha\in\mathbb{R}} \forall_{\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b}\in V} \quad (\alpha \boldsymbol{a}) \cdot \boldsymbol{b} = \alpha(\boldsymbol{a} \cdot \boldsymbol{b}), \\ & \forall_{\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b} , \boldsymbol{c}\in V} \quad \boldsymbol{c} \cdot (\boldsymbol{a}+ \boldsymbol{b}) = \boldsymbol{c} \cdot \boldsymbol{a} + \boldsymbol{c} \cdot \boldsymbol{b}, \\ & \forall_{ \boldsymbol{a}\in V\setminus \{\boldsymbol{0}\}}\quad \boldsymbol{a} \cdot \boldsymbol{a} \gt 0. \end{align*}

Exercício. Mostre que o espaço vectorial real $C([0,1])$ das funções contínuas no intervalo $[0,1]$ é um espaço com um produto interno definido por \[f\cdot g = \int_0^1 f(x)g(x)\, dx.\]

Define-se a norma (euclidiana) de um vector \[\|\boldsymbol{a}\|=\sqrt{\boldsymbol{a}\cdot\boldsymbol{a}}=\sqrt{\sum_{k=1}^n a_k^2}. \]

Mais detalhes: $\mathbb{R}^n$ como exemplo de espaço normado.

Um espaço vectorial real $V$ diz-se um espaço normado relativamente a uma norma $\|\cdot\|:V\to [0,+\infty[$ se:\begin{align*}& \forall_{\boldsymbol{a}\in V}\forall_{\alpha\in\mathbb{R}}\quad \|\alpha \boldsymbol{a}\|= |\alpha|\| \boldsymbol{a}\|, \\ & \forall_{\boldsymbol{a},\boldsymbol{b}\in V}\quad \| \boldsymbol{a}+\boldsymbol{b}\|\leq \| \boldsymbol{a}\| + \| \boldsymbol{b}\|.\end{align*}

Exercício. Mostre que também são normas em $\mathbb{R}^n$ as funções que a um vector $\boldsymbol{a}=(a_k)_{k=1,\dots,n}$ associam $\sum_{k=1}^n |a_k|$ ou $\max_{k=1,\dots,n}|a_k|$.

Exercício. Mostre que $\max_{x\in[0,1]} |f(x)|$ define uma norma no espaço vectorial $C([0,1])$.

0 produto externo de vectores de \(\mathbb{R}^3\) \[ \boldsymbol{a} \times \boldsymbol{b}=(a_2 b_3-a_3 b_2, a_3 b_1 - a_1 b_3, a_1 b_2- a_2 b_1). \]

Mais detalhes: propriedades do produto externo

Exercício. Verifique, para todos os $\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b}, \boldsymbol{c}\in\mathbb{R}^3, \alpha\in\mathbb{R}$:

  1. $\boldsymbol{a} \times \boldsymbol{b} = - \boldsymbol{b} \times \boldsymbol{a}$.
  2. $(\alpha\boldsymbol{a}) \times \boldsymbol{b} = \boldsymbol{a} \times (\alpha\boldsymbol{b})$.
  3. $\boldsymbol{a} \times (\boldsymbol{b}+\boldsymbol{c})=\boldsymbol{a} \times \boldsymbol{b}+\boldsymbol{a} \times \boldsymbol{c}$.
  4. $\boldsymbol{a}\cdot(\boldsymbol{a} \times \boldsymbol{b}) = \boldsymbol{b}\cdot(\boldsymbol{a} \times \boldsymbol{b})=0$.
  5. $\boldsymbol{a}\cdot(\boldsymbol{b} \times \boldsymbol{c})$ é o determinante da matriz $3\times 3$ cujas linhas são as coordenadas de $\boldsymbol{a}$, $\boldsymbol{b}$ e $\boldsymbol{c}$ por esta ordem.

A interpretação geométrica destes conceitos deve ser já familiar: o produto por um escalar como uma homotetia de razão \(\alpha\), a adição de vectores interpretada através da regra do paralelogramo, o papel do produto interno na projecção de um vector numa direcção e a norma do produto externo interpretado como a área do paralelogramo definido pelos dois vectores. Recordamos que dois vectores se dizem ortogonais se o seu produto interno é nulo. O produto externo de dois vectores é ortogonal a qualquer deles.

A norma vai ser essencial para definir os conceitos de limite, continuidade e convergência se pretendemos lidar com vectores de $\mathbb{R}^n$. Revemos duas das suas importante propriedades: a desigualdade de Cauchy-Schwarz e a desigualdade triangular.

Proposição (Desigualdade de Cauchy-Schwarz). Dados dois quaisquer vectores \(\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b}\in\mathbb{R}^n\) vale

\[ \left|\boldsymbol{a}\cdot\boldsymbol{b}\right|\leq \|\boldsymbol{a}\|\|\boldsymbol{b}\|.\]

Discussão da demonstração. Provavelmente qualquer leitor conseguiria com maior ou menor esforço fornecer uma demonstração por força bruta baseada em levantar ao quadrado ambos os lados da desigualdade e usar as definições do produto interno e da norma. Tal acabaria com certeza correcto mas com uma notação algo pesada. Optamos por uma demonstração "elegante" que terá a vantagem de expor algo de fundamental e permitir extensões a outros contextos.

Demonstração. Sejam \(\lambda\in\mathbb{R}, \boldsymbol{a}, \boldsymbol{b}\in\mathbb{R}^n\) e defina-se

\[ P(\lambda)={\|\boldsymbol{a}+\lambda \boldsymbol{b}\|}^2 = \|\boldsymbol{a}\|^2 + 2\lambda \boldsymbol{a}\cdot\boldsymbol{b}+\lambda^2 \|\boldsymbol{b}\|^2\]

Note-se que, com \(\boldsymbol{a}\) e \(\boldsymbol{b}\) fixos, \(P\) é um polinómio de segundo grau em \(\lambda\) que nunca toma valores negativos. Como toda a gente que alguma vez resolveu uma equação de segundo grau sabe, tal só é possível se ambas as raí­zes do polinómio não forem números reais ou se forem números reais idênticos. Recordando a fórmula resolvente da equação de segundo grau tal é equivalente a

\[ {\left|\boldsymbol{a}\cdot\boldsymbol{b}\right|}^2\leq \|\boldsymbol{a}\|^2\|\boldsymbol{b}\|^2 \]

que é equivalente ao que pretendíamos demonstrar. Fim de demonstração.

Corolário (Desigualdade triangular). Dados dois quaisquer vectores \(\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b}\in\mathbb{R}^n\) vale \[ \left\|\boldsymbol{a}+\boldsymbol{b}\right\|\leq \|\boldsymbol{a}\| + \|\boldsymbol{b}\|\]

Ideia da demonstração. Uma desigualdade equivalente obtém-se considerando o quadrado de ambos os lados da desigualdade que se pretende mostrar. Expanda-se os quadrados e use-se a desigualdade de Cauchy-Schwarz. Fim da ideia da demonstração.

Questão Identifique em que circunstâncias as desigualdades mencionadas se reduzem a igualdades.

Mais detalhes: desigualdade triangular e norma num espaço com produto interno.

Para obter a desigualdade triangular note que\[ \left\|\boldsymbol{a}+\boldsymbol{b}\right\|\leq \|\boldsymbol{a}\| + \|\boldsymbol{b}\| \Leftrightarrow \left\|\boldsymbol{a}+\boldsymbol{b}\right\|^2 \leq (\|\boldsymbol{a}\| + \|\boldsymbol{b}\|)^2 \Leftrightarrow 2 \boldsymbol{a} \cdot \boldsymbol{b} \leq 2 \|\boldsymbol{a}\| \|\boldsymbol{b}\|. \]

Exercício. Mostre que um espaço com um produto interno ($\cdot$) é um espaço normado para a norma definida por $\|\boldsymbol{a}\|=\sqrt{\boldsymbol{a}\cdot \boldsymbol{a}}$.

Exercicio. Justifique que \[C([0,1])\ni f \mapsto \left(\int_0^1 f^2(x)\, dx\right)^{1/2}\] define uma norma.

Exercício. Verifique que para quaisquer funções $f,g\in C([0,1])$ temos \[\int_0^1 f(x)g(x)\, dx \leq \left(\int_0^1 f^2(x)\, dx\right)^{1/2}\left(\int_0^1 g^2(x)\, dx\right)^{1/2}.\]

Corolário. Dados dois quaisquer vectores \(\boldsymbol{a}, \boldsymbol{b}\in\mathbb{R}^n\) vale \[\|\boldsymbol{a}-\boldsymbol{b}\|\geq \left|\|\boldsymbol{a}\|-\|\boldsymbol{b}\|\right|\]

Ideia da demonstração. Na desigualdade triangular substitua $\boldsymbol{a}$ por $\boldsymbol{x}-\boldsymbol{y}$ e $\boldsymbol{b}$ por $\boldsymbol{y}$. Repita mas desta vez com $\boldsymbol{a}$ por $\boldsymbol{y}-\boldsymbol{x}$ e $\boldsymbol{b}$ por $\boldsymbol{x}$. As duas desigualdades que obteve implicam o resultado. Fim da ideia de demonstração.

Definição (Distância, distância entre conjuntos). A distância entre dois vectores \(\boldsymbol{a}\) e \(\boldsymbol{b}\) é definida pela norma da sua diferença \(\|\boldsymbol{a}-\boldsymbol{b}\|\). A distância entre um ponto \(\boldsymbol{a}\) e um conjunto não vazio \(S\subset\mathbb{R}^n\), abreviadamente \(d(\boldsymbol{a},S)\), é definida pelo í­nfimo das distâncias entre \(\boldsymbol{a}\) e pontos do conjunto. A distância entre dois conjuntos não vazios, $A$ e $B$, define-se via \[ d(A, B)=\inf_{\boldsymbol{a}\in A, \boldsymbol{b}\in B}\|\boldsymbol{a}-\boldsymbol{b}\|.\]


Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 13/04/2022 13:35:56.