Conteúdo

Cálculo Diferencial e Integral II

Integrais sobre variedades

O nosso objectivo imediato é calcular integrais e, em particular, volumes $k$-dimensionais sobre contradomínios de parametrizações descrevendo uma variedade $k$-dimensional imersa em $\mathbb{R}^n$ ($1\lt k\lt n$) (vizinhanças de coordenadas), variedades $k$-dimensionais ou mesmo uniões finitas de variedades. Começamos por notar que no período anterior excluímos os casos $k=1$ e $k=n$ pois estes já foram implicitamente objecto de estudo quando considerámos comprimento de caminhos e linhas e a fórmula de mudança de variáveis na integração.

Integrais de superfície

Começamos por considerar a situação correspondente a variedades-$2$ em $\mathbb{R}^3$ (superfícies regulares). Irá revelar-se suficientemente detalhada para podermos posteriormente lidar com o caso geral.

A ideia central abaixo será a caracterização do factor de escala entre áreas do espaço dos parâmetros para a superfície e como calculá-lo para os diferentes tipos de descrição de variedades-$2$ que consideramos (representações paramétricas, explícitas ou implícitas). Esse factor de escala vale aonde essa representação for válida, o que implica que só obtemos imediatamente uma definição aplicável em vizinhanças de coordenadas e que, posteriormente, precisaremos de combinar essas definições locais para obter uma definição global de integral sobre uma toda uma variedade-$2$.

Elemento de volume bidimensional
O elemento de volume bidimensional como factor de escala de áreas.

Definição (Integral de superfície numa vizinhança de coordenadas). Seja $U\subset\mathbb{R}^2$ um aberto limitado, $r:U\to\mathbb{R}^3$ tal que $r\in C^1(U)$, $r$ é injectiva com inversa contínua e $Dr$ é injectiva em $U$. Considere-se $f:S\to\mathbb{R}$. Definimos o integral de $f$ em $S=r(U)$ relativamente à parametrização $r$ como sendo \[\iint_S f\, dS = \iint_U f(r(\boldsymbol{t}))\left\|\frac{\partial r}{\partial t_1}\times \frac{\partial r}{\partial t_2}\right\|\, dt_1\, dt_2,\] em que $\times$ denota o produto externo entre vectores de $\mathbb{R}^3$ e $\boldsymbol{t}=(t_1, t_2)$, se o integral do segundo membro existir.

A motivação para esta definição consiste na área de um paralelogramo definido por dois vectores $\boldsymbol{a}$ e $\boldsymbol{b}$ em $\mathbb{R}^3$ ser exactamente $\|\boldsymbol{a}\times \boldsymbol{b}\|$ e do transformado por $r$ de um intervalo de lados de comprimentos $\Delta t_1$ e $\Delta t_2$ ser “aproximável” pela área de um paralelogramo com lados definidos por $\Delta t_1\frac{\partial r}{\partial t_1}$ e $\Delta t_1\frac{\partial r}{\partial t_2}$. Designaremos $\left\|\frac{\partial r}{\partial t_1}\times \frac{\partial r}{\partial t_2}\right\|$ como o elemento de volume bidimensional relativo à parametrização $r$. Note que com as hipóteses que considerámos $\frac{\partial r}{\partial t_1}$ e $\frac{\partial r}{\partial t_2}$ são linearmente independentes, geram em cada ponto o espaço tangente a $S$, e $\frac{\partial r}{\partial t_1}\times\frac{\partial r}{\partial t_2}$ gera o espaço normal.

Note que na definição admitimos que o integral possa depender da parametrização $r$. Que tal não é o caso é estabelecido por

Teorema (independência do integral de superfície numa vizinhança de coordenadas relativamente à parametrização). Sejam $\alpha:U_1\subset\mathbb{R}^2\to \mathbb{R}^3$ e $\beta:U_2\subset\mathbb{R}^2\to \mathbb{R}^3$ duas parametrizações como na definição anterior e verificando $S=\alpha(U_1)=\beta(U_2)$. Então os respectivos integrais de superfície para a mesma função definida em $S$ são iguais, se ambos existirem.

Ideia da demonstração. Um cálculo directo mas relativamente pesado, envolvendo o teorema da função implícita, permite estabelecer que $\alpha\circ \beta^{-1}$ ou $\beta\circ \alpha^{-1}$ é uma mudança de variáveis que transforma cada uma das expressões para o integral na outra usando a fórmula de mudança de variáveis. Fim da ideia de demonstração.

Relembrando que uma variedade-2 em $\mathbb{R}^3$ é localmente um gráfico de uma função $C^1$ que nos dá uma das coordenadas em função das outras duas, isto é, pode ser descrita explicitamente, uma questão natural é saber como efectuar os cálculos de um integral de superfície quando a superfície é descrita explicitamente. Para fixar ideias suponhamos que $h:A\subset\mathbb{R}^2$ é uma função $C^1(\overline{A})$ com $A$ aberto limitado e $S=\{(x,y,h(x,y))\in\mathbb{R}^3:(x,y)\in A\}$. Como vimos ao estabelecer as várias caracterizações equivalentes de variedade, podemos descrever $S$ parametricamente via $A\ni (x,y)\mapsto r(x,y)=(x,y,h(x,y))$ pelo que consideramos \begin{align*}\frac{\partial r}{\partial x}&=\left(1, 0, \frac{\partial h}{\partial x}\right)\\ \frac{\partial r}{\partial y}&=\left(0, 1, \frac{\partial h}{\partial y}\right)\end{align*} donde \[\frac{\partial r}{\partial x}\times \frac{\partial r}{\partial y}=\left(- \frac{\partial h}{\partial x} , - \frac{\partial h}{\partial y} , 1\right)\] e, para o elemento de volume bidimensional relativo a esta parametrização, \[\left\|\frac{\partial r}{\partial x}\times \frac{\partial r}{\partial y}\right\| =\sqrt{1+{\|\nabla h\|}^2}.\] Obtemos assim, por exemplo, que, se o integral existir, a área de $S$ será \[\int_A \sqrt{1+{\|\nabla h\|}^2}\, dx\, dy.\]

No caso da superfície ser descrita por uma representação implícita $F(x,y,z)=0$ com $F$ satisfazendo as condições na caracterização de uma variedade por representações implícitas e supondo adicionalmente que $S$ é um gráfico de uma função $(x,y)\mapsto z=h(x,y)$, podemos exprimir o elemento de volume directamente em termos de derivadas parciais de $F$, usando o tipo de cálculos que já usámos para funções definidas implicitamente. Para cada ponto $(x_0,y_0,z_0)\in S$, existe uma vizinhança de $(x_0,y_0)$ onde se verifica \[F(x,y,h(x,y))=0.\] Diferenciando em ordem a $x$ e a $y$ ambos os membros da igualdade anterior obtém-se \begin{gather*}\frac{\partial F}{\partial x}(x,y,h(x,y))+ \frac{\partial F}{\partial z}(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial x}=0 \\ \frac{\partial F}{\partial y}(x,y,h(x,y))+ \frac{\partial F}{\partial z}(x,y,h(x,y))\frac{\partial h}{\partial y}=0 \end{gather*} pelo que podemos obter as derivadas parciais de $h$ em termos de derivadas parciais de $F$ na forma \begin{align*}\frac{\partial h}{\partial x} &= - \frac{\frac{\partial F}{\partial x}(x,y,h(x,y))}{\frac{\partial F}{\partial z}(x,y,h(x,y))}, \\ \frac{\partial h}{\partial y} &= - \frac{\frac{\partial F}{\partial y}(x,y,h(x,y))}{\frac{\partial F}{\partial z}(x,y,h(x,y))}. \end{align*} Tal permite-nos obter uma forma alternativa para o elemento de volume, quando temos uma descrição de $S$ via uma representação implícita, como sendo \[\left\|\frac{\partial r}{\partial x}\times \frac{\partial r}{\partial y}\right\| = \frac{\left\|\nabla F\right\|}{\left|\frac{\partial F}{\partial z}\right|},\] no caso de $S$ ser o gráfico de uma função $(x,y)\mapsto z$ (no caso de ser um gráfico de uma função $(x,z)\mapsto y$ obtém-se $\left\|\frac{\partial r}{\partial x}\times \frac{\partial r}{\partial z}\right\| = \frac{\left\|\nabla F\right\|}{\left|\frac{\partial F}{\partial y}\right|}$, etc.).

Exemplo. Consideremos o cálculo da área da esfera \[S^2=\left\{(x,y,z)\in\mathbb{R}^3:x^2+y^2+z^2=1\right\}.\] Uma possibilidade para efectuar o cálculo é considerar uma parametrização baseada em coordenadas esféricas com $\rho=1$, isto é \[{]0,2\pi[}\times {]0,\pi[} \ni (\theta,\phi)\mapsto r(\theta,\phi)= (\cos \theta \operatorname{sen}\phi, \operatorname{sen} \theta\operatorname{sen}\phi, \cos\phi).\] Note que a parametrização tem todas as propriedades excepto ter como contradomínio toda a esfera. No entanto, o que nos falta é nitidamente um conjunto cuja área bidimensional é $0$, algo que poderia ser precisado mais detalhadamente mas que, por enquanto, ignoramos.

Temos então \begin{align*}\frac{\partial r}{\partial \theta} & = (-\operatorname{sen} \theta \operatorname{sen}\phi, \cos \theta\operatorname{sen}\phi, 0) \\ \frac{\partial r}{\partial \phi} & = (\cos \theta\cos \phi, \operatorname{sen} \theta\cos\phi,-\operatorname{sen}\phi) \end{align*} donde \[\frac{\partial r}{\partial \theta}\times \frac{\partial r}{\partial \phi} = (-\cos\theta\operatorname{sen}^2\phi, -\operatorname{sen}\theta\operatorname{sen}^2\phi, -\operatorname{sen}\phi\cos\phi )\] e, notando que $\phi\in{]0,\pi[}$, \[\left\|\frac{\partial r}{\partial \theta}\times \frac{\partial r}{\partial \phi}\right\|=\operatorname{sen}\phi\] pelo que para a área da esfera encontramos \[\int_0^{2\pi}\left(\int_0^\pi \operatorname{sen}\phi \, d\phi\right)\, d\theta= 4\pi.\] Fim do exemplo.

Exemplo. Voltamos a efectuar o cálculo mas desta vez usando uma representação explícita da esfera. Além de encontrarmos o problema de lidar com conjuntos de volume bidimensional desprezável, algo para o qual não temos um conceito rigoroso, observamos que precisamos de representar a esfera como a união de dois hemisférios para podermos usar representações explícitas, e vamos encontrar uma dificuldade inesperada nos cálculos.

Consideremos a esfera descrita explicitamente por $z=\pm \sqrt{1-x^2-y^2}$ com $x^2+y^2\leq 1$. Tal sugere  calcular a área da esfera como $2$ vezes a área do hemisfério descrito por $z= \sqrt{1-x^2-y^2}$ com $x^2+y^2\leq 1$. Isso leva-nos a considerar, de acordo com a expressão com obtemos para o elemento de volume para representações implícitas, o integral \[\iint_{x^2+y^2\lt 1}\frac{1}{\sqrt{1-x^2-y^2}}\, dx\, dy \] que infelizmente não existe devido à função integranda ser ilimitada. No entanto, sendo $\epsilon\gt 0$, podemos considerar \begin{align*}& \iint_{\epsilon \lt x^2+y^2\lt 1}\frac{1}{\sqrt{1-x^2-y^2}}\, dx\, dy = \int_0^{2\pi}\left(\int_{\epsilon}^1 \frac{r}{\sqrt{1-r^2}}\, dr\right)\, d\theta \\ & =2\pi \left.\left[-(1-r^2)^{1/2}\right]\right|_{r=\epsilon}^{r=1}=2\pi\sqrt{1-\epsilon^2}.\end{align*} Quando $\epsilon\to 0$ obtemos o resultado que desejávamos, $2\pi$, que multiplicado por $2$ dá-nos o valor $4\pi$ que já tínhamos calculado.

Embora o argumento de aproximação do parágrafo anterior possa tornar-se preciso, a sua justificação rigorosa está para além dos objectivos do presente curso. Apresentamo-lo aqui para fazer notar que se procurarmos um conceito de integral sobre toda uma variedade podemos encontrar dificuldades de ordem técnica que não só incluem o tornar claro o que são conjuntos de volume $k$-dimensional nulo (aqui $k=2$) numa variedade, juntar cálculos em várias vizinhanças de coordenadas distintas, e, por vezes, restringir vizinhanças de coordenadas para evitar lidar com integrais para os quais não estamos tecnicamente bem equipados com o integral de Riemann. Tudo isto é observável num exemplo tão simples como é o cálculo da área da esfera $S^2$. Fim do exemplo.

Exemplo. Voltemos a considerar o mesmo exemplo mas usando a representação implícita da esfera via $x^2+ y^2+z^2=1$. Dando a esta equação a forma $F(x,y,z)=0$ com $F(x,y,z)=x^2+ y^2+ z^2-1$, obtemos \[\nabla F(x,y,z) = (2x, 2y, 2z)\] pelo que o elemento de volume pode ser calculado via \[\frac{\|(2x, 2y, 2z)\|}{|2z|}=\frac{\sqrt{x^2+y^2+z^2}}{|z|}= \frac{1}{|z|}= \frac{1}{\sqrt{1-x^2-y^2}},\] prosseguindo-se como no caso da representação explícita. Fim do exemplo.

Um tipo particular de integrais de superfície a considerar corresponde a fluxos de campos vectoriais através de superfícies (que poderão ser mesmo uniões finitas de superfícies regulares com conjuntos de volume bidimensional desprezível como veremos em breve nos exemplos; por enquanto ignoramos esta possibilidade). Para tal será dado um campo $G:A\subset\mathbb{R}^3\to \mathbb{R}^3$ suficientemente regular para permitir integração numa superfície regular $S\subset A$ e em que $S$ é tal que sobre $S$ pode ser definida uma normal unitária contínua $\nu$. Definimos o fluxo de $G$ através de $S$ na direcção de $\nu$ como sendo  \[\iint_S G\cdot \nu \, dS.\] Consideremos alguns exemplos em que $S$ é identificada facilmente como uma vizinhança de coordenadas ou uma união finita de variedades $2$ que são vizinhanças de coordenadas.

Exemplo. Seja $S=\{(x,y,z)\in\mathbb{R}^3: x+y+z=1, x\gt 0, y\gt 0, z\gt 0\}$, $G:\mathbb{R}^3 \to \mathbb{R}^3$ é definida por $G(x,y,z)=(2x,-y,xz)$, e consideremos a normal unitária $\nu$ a $S$ com terceira componente positiva. Pretendemos calcular o fluxo de $G$ através de $S$ no sentido de $\nu$.

Notamos que podemos descrever o plano que contém $S$ implicitamente por $F(x,y,z)=0$ com $F(x,y,z)=x+y+z-1$ pelo que o espaço normal num ponto qualquer de $S$ é gerado pelo vector $(1,1,1)$. Para termos terceira coordenada positiva devemos ter $\nu=\frac{1}{\sqrt{3}}(1,1,1)$.

Notando que $S$ é um gráfico de uma função de $(x,y)$ consideramos como elemento de volume \[\frac{\|\nabla F\|}{\left|\frac{\partial F}{\partial z}\right|}=\sqrt{3}\] pelo que \begin{align*}\iint_S G\cdot \nu\, dS & =\iint_{\{x+y\lt 1,\; x\gt 0, \; y\gt 0\}} (2x, -y , x(1-x-y))\cdot (1,1,1)\, dx\,dy \\ & = \iint_{\{x+y\lt 1, x\gt 0, y\gt 0\}}  3x-y -x^2-xy \,dx\, dy \\ &= \int_0^1\left(\int_0^{1-x} 3x-y -x^2-xy \, dy \right) dx \\ &= \int_0^1 (3x-x^2)(1-x)-(1+x)\frac{(1-x)^2}{2}\, dx \\ & = \int_0^1 x^3-4x^2+3x-\frac{x^3}{2}+ \frac{x^2}{2}+\frac{x}{2}-\frac{1}{2}\, dx\\ &=\frac{1}{2}\int_0^1 x^3-3x^2+7x-1\, dx\\ &= \frac{1}{2} \left(\frac{1}{4}-1+\frac{7}{2}-1\right) = \frac{7}{8}.\end{align*}

Fim de exemplo.

No próximo exemplo precisaremos de uma definição prévia.

Definição (normal unitária exterior). Dado um aberto $A\subset\mathbb{R}^n$ e um ponto $\boldsymbol{x}\in \partial A$ dizemos que está definida uma normal exterior $\nu$ a $A$ em $\boldsymbol{x}$ se existir uma vizinhança $W$ de $\boldsymbol{x}$ tal que $W\cap \partial A$ é uma variedade $n-1$ dimensional, $\nu$ gerar o espaço normal a $W\cap \partial A$ em $\boldsymbol{x}$ e existir $\epsilon\gt 0$ tal que $\boldsymbol{x}+t\nu\not\in A$ para $t\in {]0,\epsilon[}$.

Se $A\subset\mathbb{R}^n$ for um aberto limitado tal que é possível definir uma normal unitária exterior sobre a sua fronteira, com a possível excepção de um conjunto desprezável em termos de integrais em variedades $n-1$ dimensionais, iremos considerar frequentemente fluxos de campos através de tais fronteiras e relativamente a uma normal exterior. Acontece que tais fronteiras não serão necessariamente variedades $n-1$ dimensionais mas sim reuniões finitas de tais variedades e de um conjunto desprezável em termos de integrais em variedades $n-1$ dimensionais. O exemplo seguinte é desse tipo.

Exemplo. Seja $V=\left\{(x,y,z)\in\mathbb{R}^3:x^2+y^2\leq z\leq 1, y\geq 0\right\}$. Pretendemos calcular \[\iint_{\partial V} H\cdot \nu \, dS\] em que $\nu$ é a normal unitária exterior a $V$ e $H(x,y,z)=(1+z, z^2, xy)$.

 

A região e a sua normal exterior no cálculo do fluxo de um campo.
A região $V$ e a normal unitária exterior $\nu$ sobre $\partial V$.

Temos $\partial V=S_1\cup S_2\cup S_3\cup E$ em que \begin{align*}S_1 &=\left\{(x,0,z)\in\mathbb{R}^3: 1\gt z\gt x^2, \; x\in {]-1,1[}\right\} \\ S_2 &=\left\{(x,y,1)\in\mathbb{R}^3: y\gt 0, \; x^2+y^2\lt 1\right\} \\ S_3 &=\left\{(x,y,z)\in\mathbb{R}^3: z=x^2+ y^2,\; y\gt 0, z\lt 1\right\}\end{align*} e $E=\partial V\setminus (S_1\cup S_2\cup S_3)$ é um conjunto irrelevante em termos de integração bidimensional.

Sobre $S_1$ temos $\nu=(0.-1,0)$ pelo que \[\iint_{S_1}H\cdot \nu \, dS= \iint_{\{(x,z)\in\mathbb{R}^2: 1\gt z\gt x^2, \; x\in{]-1,1[}\}}(-z^2)\, dx\, dz = -\int_{-1}^1 \left(\int_{x^2}^1 z^2\, dz\right)\, dx=-\frac{4}{7}.\]

Sobre $S_2$ temos $\nu=(0,0,1)$ pelo que \[\iint_{S_2}H\cdot \nu \, dS= \iint_{\{(x,y)\in\mathbb{R}^2: x^2+ y^2<1, \; y\gt 0 \}}xy\, dx\, dy =\int_0^\pi\left(\int_0^1 r^3 \cos\theta \operatorname{sen}\theta\, dr \right)d\theta=0.\]

Sobre $S_3$ temos $\nu=\frac{(2x,2y,-1)}{\sqrt{1+4x^2+ 4y^2}}$ pelo que \begin{align*}\iint_{S_3}H\cdot \nu \, dS & = \iint_{\{(x,y)\in\mathbb{R}^2: z=x^2+ y^2\lt 1, \; y\gt 0  \}}(2x(1+z)+2yz^2-xy)\, dx\, dy \\ & = \int_0^\pi\left(\int_0^1 (2r\cos\theta(1+r^2)+2r\operatorname{sen}\theta r^4 - r^2\cos\theta \operatorname{sen}\theta )r \right)d\theta = \frac{4}{7}.\end{align*}

Assim \[\iint_{\partial V}H\cdot \nu \, dS = 0.\] Veremos mais à frente que este cálculo pode ser efectuado de uma forma muito mais rápida usando o teorema da divergência.

Fim de exemplo.

A propriedade de poder definir uma normal unitária contínua sobre uma superfície pode parecer estranha ao definir fluxo de um campo. Dizemos que uma superfície regular para que tal acontece é uma superfície orientável. Aliás, mais geralmente, para variedades de dimensão $n-1$ em $\mathbb{R}^n$, ditas hipersuperfícies,

Definição (Hipersuperfície orientável). Seja $V$ uma hipersuperfície em $\mathbb{R}^n$. Dizemo-la orientável se existe uma função contínua definida em $V$ que a cada um dos seus pontos associa um vector unitário $\nu$ no espaço normal.

Convém dar um exemplo de uma superfície regular não orientável para nos convencermos que esta preocupação tem razão de ser.

Banda de Möbius

Banda de Möbius.
Fotografia de David Benbennick licenciada de acordo com a licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported.

Exemplo (banda de Möbius). Podemos construir uma representação paramétrica para uma banda de Möbius considerando um segmento de recta de comprimento $2$ que roda 180º em torno do seu centro enquanto o seu centro roda 360º em torno de outro ponto a uma distância superior a $1$, ficando o segmento alinhado conforme a direcção da posição original, mas com sentido oposto, ao completar esta trajectória. Duas representações paramétricas deste tipo devem ser suficientes para verificar analiticamente que se trata de uma variedade-$2$. Fim de exemplo.

Caso geral: generalizando as dimensões

No caso de variedades-$2$ em $\mathbb{R}^3$ (superfícies regulares) usámos que a maneira adequada para escalar volumes do espaço dos parâmetros para a variedade era considerar um elemento de volume bidimensional que exprimimos na forma $\left\|\frac{\partial r}{\partial t_1}\times \frac{\partial r}{\partial t_2}\right\|$ em que $r$ era uma parametrização admissível, no sentido da definição de variedade, para a descrever localmente. Tal facto de escala corresponde ao volume bidimensional de um paralelogramo definido pelos vectores $\frac{\partial r}{\partial t_1}$ e $\frac{\partial r}{\partial t_1}$. Acontece que este volume também poderia ter calculado via \[\left(\det \begin{bmatrix}\frac{\partial r}{\partial t_1}\cdot \frac{\partial r}{\partial t_1} & \frac{\partial r}{\partial t_1}\cdot \frac{\partial r}{\partial t_2} \\ \frac{\partial r}{\partial t_2}\cdot \frac{\partial r}{\partial t_1} & \frac{\partial r}{\partial t_2}\cdot \frac{\partial r}{\partial t_2}\end{bmatrix}\right)^{1/2}\] (derive esta igualdade usando o $\operatorname{sen}$ e o $\cos$ do ângulo formado pelos dois vectores). Esta expressão alternativa é um caso particular de o volume $k$-dimensional de um paralelogramo gerado por $k$ vectores de $\mathbb{R}^n$, $\boldsymbol{v}_1,\dots, \boldsymbol{v}_k$, ser \[\left(\det\begin{bmatrix}\boldsymbol{v}_i\cdot \boldsymbol{v}_j\end{bmatrix}_{i,j=1,\dots,k}\right)^{1/2}.\] Assim, uma ideia paralela ao caso particular que já considerámos consiste em definir a matriz da métrica relativamente a uma parametrização $r$ como sendo \[\begin{bmatrix}\frac{\partial r}{\partial t_i}\cdot \frac{\partial r}{\partial t_j}\end{bmatrix}_{i,j=1,\dots,k}, \] o elemento de volume $k$-dimensional relativamente a uma parametrização $r$ como sendo \[V_k(t_1,\dots,t_k)=\left(\det\begin{bmatrix}\frac{\partial r}{\partial t_i}\cdot \frac{\partial r}{\partial t_j}\end{bmatrix}_{i,j=1,\dots,k}\right)^{1/2}, \] e finalmente definir um integral numa variedade $k$-dimensional $V$ que seja uma vizinhança de coordenadas $r(U)=V$ via \[\int_V f \,dV_k = \int_U f(r(\boldsymbol{t})) V_k(t_1,\dots,t_k)\, d\boldsymbol{t}\] se o integral do segundo membro da igualdade existir.

Exercício. Verifique que o determinante da matriz da métrica é sempre maior ou igual a $0$.

Exercício. Verifique, a partir da fórmula de mudança de variáveis na integração, que o volume $k$-dimensional de um paralelogramo gerado por $k$ vectores de $\mathbb{R}^n$ é efectivamente o indicado.

Exercício. Verifique que no caso $k=n-1$ e $V$ definida explicitamente via $x_n=f(x_1,\dots,x_{n-1})$, temos $V_{n-1}(x_1,\dots,x_{n-1})=\sqrt{1+\|\nabla f(x_1,\dots,x_{n-1})\|^2}$ generalizando o que já conhecíamos para $k=2$ e $n=3$.

Caso geral: de vizinhanças de coordenadas a variedades

Embora atrás tenhamos considerado alguns argumentos ad hoc para obter aquilo a que vamos chamar um integral sobre uma variedade a partir de integrais em vizinhanças de coordenadas particulares sobre a variedade, não formalizámos como o fazer em termos genéricos. Concentrar-nos-emos em perceber onde residem as dificuldades e quais as estratégias possíveis para torneá-las. Uma descrição precisa das características técnicas das ferramentas a utilizar fica muito para além dos objectivos deste curso.

A descrição de uma variedade através de uma única parametrização que simultaneamente satisfaça os requisitos encontrados na definição de variedade e tenha derivadas parciais limitadas com parâmetros variando num aberto limitado com fronteira com medida nula (este último requisito para garantir que nessa vizinhança de coordenadas o integral que nos dá a área da vizinhança de coordenadas existe) não é um dado adquirido. O que podemos afirmar é que para cada ponto sobre a variedade existe uma vizinhança desse ponto em $\mathbb{R}^n$ tal que a sua intersecção com a variedade é uma vizinhança de coordenadas que satisfaz esse propósito. Definir um integral gloalmente sobre a variedade consiste em "colar" globalmente toda esta informação de uma maneira que faça sentido em termos de integração.

Uma primeira dificuldade consiste em que toda esta informação local é transmitida via um número de parametrizações que pode parecer não controlável em geral. Qualquer ideia de soma de integrais em vinhanças de coordenadas passa por estas poderem ser consideradas em número finito ou quando muito numerável (neste último caso usando a soma de uma série). Uma ferramenta que pode ser usada para este fim é o teorema de Heine-Borel. Se uma variedade for limitada e fechada (compacta) e para cada um dos seus pontos escolhermos uma vizinhança de coordenadas com os requisitos anteriores, o teorema de Heine-Borel garante que $V$ estará contida numa união finita de tais vizinhanças de coordenadas. Modificando este argumento no caso de $V$ não ser limitada, através da intersecção de $V$ com bolas fechadas, é possível obter uma união contável de vizinhanças de coordenadas cuja união contém $V$ e em que cada vizinhança de coordenadas tem as propriedades desejadas.

Resolvida esta primeira questão suponhamos então que $V$ é uma variedade $k$-dimensional limitada, $f:V\to\mathbb{R}$ é uma função contínua sobre $V$ e que queremos definir o integral $\int_V f dV_k$. Recorremos a uma ferramenta técnica designada como partição da unidade que pode ser descrita com facilidade mas cuja existência exigiria recorrer a argumentos relativamente sofisiticados sobre integração que vamos omitir. Seja $\{V_i\}$ uma família de abertos de $\mathbb{R}^n$ em número finito cuja união contém $V$ e tais que cada $V_i\cap V$ é uma vizinhança de coordenadas, isto é, existe um aberto de $\mathbb{R}^k$, $U_i$ e uma representação paramétrica $r_i:U_i\to \mathbb{R}^n$ tal que $V_i\cap V=r_i(U_i)$, $r_i\in C^1(U_i)$, $Dr_i$ é injectiva em $U_i$ e $r_i^{-1}$ é injectiva. Chama-se partição da unidade de $V$ subordinada à família de abertos $\{V_i\}$, a uma família $\{\varphi_i\}$ de funções $C^\infty(\mathbb{R}^n)$ tal que o fecho do conjunto onde cada $\varphi_i$ é não nula está contido em $V_i$ para cada $i$, temos $0\leq \varphi_i\leq 1$ para cada $i$, e $\sum_i \varphi_i(\boldsymbol{x})=1$ para cada $\boldsymbol{x}\in V$. Admitimos que podemos sempre definir uma tal partição da unidade mas não o vamos provar aqui.

Então o integral é definido via \[\int_V f \, dV_k=\sum_i \int_{V\cap V_i} \varphi_i f \, dV_k\] graças a cada parcela do segundo membro da igualdade ser um integral em vizinhança de coordenadas. Note também que não há problemas de existência de cada integral $\int_{V\cap V_i} \varphi_i f \, dV_k$ pois o elemento de volume será limitado e contínuo no fecho do conjunto $\{\boldsymbol{t}\in U_i: f(r_i(\boldsymbol{t}))\varphi_i(r_i(\boldsymbol{t}))\neq 0\}$.

Claro que esta definição exige a verificação do que o resultado é independente da partição da unidade e da família de representações paramétricas, algo que também omitiremos, mas fazemos notar que dependeria de um resultado análogo ao que mencionámos atrás sobre independência do integral de superfície numa vizinhança de coordenadas relativamente à parametrização.

Embora esta definição de integral em variedades que esboçámos seja uma ferramenta teórica útil, observamos que, para cálculo do integral, se recorre a decomposições da variedade em reuniões de vizinhanças de coordenadas adequadas disjuntas duas a duas módulo conjuntos com volume $k$-dimensional negligível, algo que é possível justificar como adequado mas que também não estudaremos detalhadamente, embora seja este de facto o método de cálculo que usamos.


Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 21/05/2021 08:51:47.