Teorema da divergência
O teorema da divergência estabelece a validade de uma igualdade \begin{equation}\int_U \div F\, d\boldsymbol{x} = \int_{\partial U} F\cdot \nu \, dV_{n-1}(\boldsymbol{x})\label{28:teor_div}\end{equation} em que $U$ é um aberto limitado de $\mathbb{R}^n$ com uma fronteira suficientemente regular, $\partial U$, onde está definida, excepto possivelmente num conjunto irrelevante do ponto de vista de volumes $n-1$ dimensionais, uma normal unitária exterior $\nu=(\nu_1,\dots,\nu_n)$ e $F=(F_1,\dots,F_n): \overline{U}\to\mathbb{R}^n$ é uma função $C^1(\overline{U})$ e \[\div F=\sum_{i=1}^n \frac{\partial F_i}{\partial x_i}.\] Uma das nossas dificuldades será entender para que abertos limitados $U$ vale o resultado. Derivar a validade de ($\ref{28:teor_div}$) numa situação particularmente simples será um primeiro passo nesse sentido. Iremos no entanto evitar lidar com os aspectos mais tecnicamente delicados da questão.
Exemplo. Seja $V\subset\mathbb{R}^{n-1}$ um aberto limitado com fronteira $\partial V\in C^1$ (excepto possivelmente num conjunto desprezável do ponto de vista de integração $n-2$ dimensional, por exemplo $V$ poderia ser um intervalo em $\mathbb{R}^{n-1}$). Seja $h:\overline{V}\to {]0,+\infty[}$ uma função de classe $C^1(\overline{V})$. Definimos \[U=\{(x_1,\dots ,x_{n-1},x_n): (x_1,\dots ,x_{n-1})\in V, 0\lt x_n \lt h(x_1,\dots ,x_{n-1})\}\] e consideramos $F:\overline{U}\to\mathbb{R}$ de classe $C^1(\overline{U})$, $F=(0,\dots,0,F_n)$. Com estas definições a igualdade ($\ref{28:teor_div}$) toma a forma \begin{equation}\int_U \frac{\partial F_n}{\partial x_n}\, d\boldsymbol{x}=\int_{\partial U} F_n\nu_n\, dV_{n-1}(\boldsymbol{x})\label{28:2}\end{equation}
Calculando os dois lados da igualdade temos para o integral $n$-dimensional, usando o teorema de Fubini, \begin{align*}\int_U \frac{\partial F_n}{\partial x_n}\, d\boldsymbol{x} &=\int_V\left(\int_0^{h(x_1,\dots,x_{n-1})}\frac{\partial F_n}{\partial x_n}\, dx_n\right)dx_1\dots dx_{n-1} \\ &= \int_V F_n(x_1,\dots,x_{n-1},h(x_1,\dots,x_{n-1}))-F_n(x_1,\dots,x_{n-1},0)\, dx_1\dots dx_{n-1}.\end{align*} Para lidar com o integral $n-1$ dimensional sobre $\partial U$ notamos que \[\partial U = (V\times\{0\})\cup S_L \cup S\] em que \begin{align*}S_L &= \{(x_1,\dots,x_{n-1},x_n)\in \overline{U}:(x_1,\dots,x_{n-1})\in\partial V\}\\ S &= \{(x_1,\dots,x_{n-1}, h(x_1,\dots,x_{n-1}): (x_1,\dots,x_{n-1})\in V\} \end{align*} Nos pontos de $V\times\{0\}$ temos $\nu_n=-1$. Nos pontos de $S_L$ onde estiver definida uma normal unitária $\nu$ temos $\nu_n=0$. Sobre $S$ temos \[\nu=\frac{\left(-\frac{\partial h}{\partial x_1}, \dots, -\frac{\partial h}{\partial x_{n-1}}, 1\right)}{\sqrt{1+\|\nabla h\|^2}}\] sendo $\sqrt{1+\|\nabla h\|^2}$ o elemento de volume $n-1$ dimensional em $S$. Assim \begin{align*}\int_{V\times\{0\}}F_n \nu_n \,dV_{n-1} & = -\int_V F_n(x_1,\dots,x_{n-1},0)\, dx_1\dots dx_{n-1}\\ \int_{S_L} F_n \nu_n \,dV_{n-1} & = 0 \\ \int_{S} F_n \nu_n \,dV_{n-1} & = \int_V F_n(x_1,\dots,x_{n-1},h(x_1,\dots,x_{n-1}))\, dx_1 \dots dx_{n-1}\end{align*} estabelecendo a igualdade do teorema da divergência neste caso particular. Fim de exemplo.
A generalização a outras regiões menos triviais pode fazer-se notando que:
- no exemplo anterior também podíamos ter a região limitada inferiormente na direcção da $n$-ésima coordenada pelo gráfico de uma função $C^1$ e não pelo hiperplano definido por $x_n=0$,
- o papel desempenhado pela $n$-ésima coordenada podia ser desempenhado por uma qualquer coordenada,
- podemos lidar com uniões de tais regiões usando uma versão $n$-dimensional do que já fizemos para o teorema de Green, em que o papel desempenhado por caminhos percorridos em sentidos opostos que levam ao cancelamento de integrais de linha na intersecção de duas regiões contíguas, é agora desempenhado por fluxos em sentidos opostos através de hipersuperfícies que separam duas regiões contíguas.
- eventualmente também precisaremos de argumentos de aproximação do aberto $U$ por subconjuntos abertos limitados aonde é mais fácil estabelecer a igualdade do teorema da divergência e daí passando ao limite sob condições apropriadas.
- podemos lidar com campos gerais se estabelecermos o resultado para campos em que todas as coordenadas menos uma são não nulas.
Definição (domínio regular). Designaremos como domínios regulares os abertos limitados com fronteira suficientemente regular para os quais os quais a estratégia atrás delineada permite estabelecer a validade da igualdade ($\ref{28:teor_div}$).
Exemplos. Não deverá ter dificuldades em convencer-se que um intervalo limitado de $\mathbb{R}^n$, uma bola ou outros conjuntos que aparecerão nos exemplos são domínios regulares. No caso de uma bola poderá ser conveniente, para estabelecer o análogo de ($\ref{28:2}$), aproximar a bola pelas suas intersecções com cilindros de raio ligeiramente menor e com eixo passando pelo centro da bola e direcção do eixo dos $x_n$, e depois fazer o raio do cilindro tender para o raio da bola.
Teorema (da divergência ou de Gauss). Sejam $U$ um domínio regular em $\mathbb{R}^n$ , com fronteira $\partial U$ onde está definida uma normal unitária exterior $\nu=(\nu_1,\dots,\nu_n)$ e $F=(F_1,\dots,F_n): \overline{U}\to\mathbb{R}^n$ uma função $C^1(\overline{U})$ e $\div F=\sum_{i=1}^n \frac{\partial F_i}{\partial x_i}$. Então vale \[\int_U \div F\, d\boldsymbol{x} = \int_{\partial U} F\cdot \nu \, dV_{n-1}(\boldsymbol{x}).\]
Aplicações do teorema da divergência
Exercício (interpretação do operador divergência). Para compreender o significado do operador divergência convém notar que sendo $U\subset\mathbb{R}^n$ um aberto e $F:U\to\mathbb{R}^n$ uma função de classe $C^1(U)$ podemos recuperar a $\div F$ à custa de um limite envolvendo o fluxo de $F$ através da fronteira de domínios reescalados em torno do ponto onde pretendemos o valor da divergência. Mais concretamente seja $\boldsymbol{x}_0\in U$ e consideremos as bolas $B_\rho(\boldsymbol{x}_0)$ para $\rho$ suficientemente pequeno e o limite \[\lim_{\rho\to 0}\frac{\int_{\partial B_\rho(\boldsymbol{x}_0)} F\cdot \nu \, dV_{n-1}}{\operatorname{vol(B_\rho(\boldsymbol{x}_0))}}.\] Use o teorema da divergência para verificar que o limite existe e é igual $\div F(\boldsymbol{x}_0)$.
Exemplo (Ângulo sólido). Dado um subconjunto $\Omega$ de $\mathbb{R}^3\setminus\{\boldsymbol{0}\}$ definimos o seu ângulo sólido relativamente a $\boldsymbol{0}$ como a área do subconjunto de $S^2=\partial B_1(\boldsymbol{0})$ definido pela sua intersecção com todas as semirectas originárias em $\boldsymbol{0}$ que intersectam $\Omega$, se essa área estiver definida. Vamos exprimir o ângulo sólido de uma superfície $S$ suficientemente regular e com normal unitária contínua $\nu$ cujo produto interno com o vector posição é positivo em todos os pontos de $S$ (tal garante que uma semirecta com origem em $\boldsymbol{0}$ se intersectar $S$ só o faz num ponto), como um fluxo de um dado campo através da superfície, especificamente consideramos \[\iint_S \frac{\boldsymbol{x}}{\|\boldsymbol{x}\|^3}\cdot \nu\, dS.\] Abreviando $r=\|\boldsymbol{x}\|$ temos $\frac{\partial r}{\partial x_i}=\frac{x_i}{r}$, pelo que $\frac{\partial}{\partial x_i}\left(\frac{x_i}{r^3}\right)=\frac{r^2-3 x_i^2}{r^5}$, donde $\div\left(\frac{\boldsymbol{x}}{\|\boldsymbol{x}\|^3}\right)=0$.
Supondo que a distância de $S$ à origem é maior que $\delta\gt 0$ considere-se a união $U$ de todos os segmentos de recta contidos em semi-rectas com origem em $\boldsymbol{0}$ e unindo um ponto de $\partial B_\delta(\boldsymbol{0})$ a um ponto de $S$. Temos $\partial U= S\cup S_{\delta}\cup S_L$ em que \[S_\delta=\{\boldsymbol{x}\in B_\delta(\boldsymbol{0}): \exists_{t\gt 1} t\boldsymbol{x}\in S\}\] e em que $S_L$ é formada por pontos de $\partial U$ que não estão em $S\cup S_\delta$. Se $S_L$ for suficientemente regular de maneira a aí estar definido um fluxo no sentido da normal unitária exterior, verificamos com facilidade que aí $\nu$ é ortogonal ao campo. Sob tais hipóteses o teorema da divergência permite escrever \[\iint_S \frac{\boldsymbol{x}}{\|\boldsymbol{x}\|^3}\cdot \nu\, dS + \iint_{S_\delta} \frac{\boldsymbol{x}}{\|\boldsymbol{x}\|^3}\cdot \nu \, dS = \iiint_U \div \left(\frac{\boldsymbol{x}}{\|\boldsymbol{x}\|^3}\right)\, d\boldsymbol{x}= 0.\] Verifica-se facilmente que o integral sobre $S_\delta$ é igual a $-\frac{1}{\delta^2} \operatorname{área}(S_\delta)$ que, por sua vez, é igual ao simétrico do ângulo sólido de $S$, o que permite concluir. Fim de exemplo.
Exemplo. (Mecânica dos meios contínuos, leis de conservação e um teorema de Liouville)
Uma possibilidade para descrever sistemas de partículas e a sua evolução consiste em considerar aplicações $\boldsymbol{x}: I\times\Omega_0 \subset \mathbb{R}\times \mathbb{R}^3\to \mathbb{R}^3$ em que $I$ é um intervalo aberto, $0\in I$, $\Omega_0$ é um aberto, e $\boldsymbol{x}$ é uma aplicação suficientemente regular, por exemplo $C^2$, convencionando-se que $\boldsymbol{x}(t,\boldsymbol{p})$ corresponde à posição da particula $\boldsymbol{p}$ no instante $t$, e que $\boldsymbol{x}(0,\boldsymbol{p})=\boldsymbol{p}$.
Para efeitos deste exemplo convencionamos também que, para cada $t\in I$, as aplicações $\boldsymbol{p}\mapsto\boldsymbol{x}(t,\boldsymbol{p})$ têm uma inversa diferenciável (que será de classe $C^2$ e que terá sempre determinante da matriz jacobiana positivo; justifique estas afirmações!).
A descrição de várias grandezas nestes sistemas pode ser feita tanto em termos das coordenadas espaciais $\boldsymbol{x}=(x_i)_{i=1,\dots,3}$ como das coordenadas materiais $\boldsymbol{p}=(p_i)_{i=1,\dots,3}$. Tomamos como exemplo a densidade $\rho$ (em coordenadas espaciais) ou $\boldsymbol{\rho}$ (em coordenadas materiais) para a qual haverá duas possíveis descrições relacionadas por \[\rho(t,\boldsymbol{x}(t,\boldsymbol{p})))=\boldsymbol{\rho}(t,\boldsymbol{p}).\] As várias grandezas que se estudam são restringidas por leis de conservação. No caso da densidade temos a lei da conservação da massa que pode ser formulada como afirmando que a massa de um conjunto de partículas permanece invariante, isto é, sendo $\omega_0$ com $\overline{\omega_0}\subset\Omega_0$ um domínio regular e $\omega_t=\{\boldsymbol{x}(t, \boldsymbol{p}): \boldsymbol{p}\in \omega_0\}$ temos \begin{equation}\frac{d}{dt}\int_{\omega_t} \rho(t, \boldsymbol{x})\, d\boldsymbol{x}=0. \label{cm:1}\end{equation} Consideramos também a velocidade das partículas do sistema definia via \[\boldsymbol{v}(t,\boldsymbol{p})= \frac{\partial \boldsymbol{x}}{\partial t}.\]
O teorema de Liouville a que nos referimos neste exemplo trata da comutação da derivada com o integral em situações similares ao lado esquerdo de $(\ref{cm:1})$ com $\rho$ substituído por uma outra função de $t$ e $\boldsymbol{x}$. Vamos usar o teorema da divergência para derivá-lo.
Seja então $\boldsymbol{f}:I\times\Omega_0\to \mathbb{R}$ uma função de classe $C^1$ e $f(t,\boldsymbol{x}(t,\boldsymbol{p})))=\boldsymbol{f}(t,\boldsymbol{p})$. Para $t\gt 0$ consideramos o subconjunto de $\mathbb{R}^4$ definido por $U_t=\{(s,\boldsymbol{x}(s,\boldsymbol{p})): s\in [0,t], \boldsymbol{p}\in \omega_0\}$. $U_t$ é um domínio regular em $\mathbb{R}^4$ com fronteira \[\partial U_t=(\{0\}\times \overline{\omega_0}) \cup (\{t\}\times \overline{\omega_t}) \cup\{(s,\boldsymbol{x}): s\in [0,t], \boldsymbol{x}\in \partial\omega_s\}.\] A normal unitária exterior $\nu$ a $\partial U_t$ é $(-1,0,0,0)$ em $\{0\}\times\omega_0$, $(1,0,0,0)$ em $\{0\}\times \omega_t$ e ortogonal a $(1,v(t,\boldsymbol{x}))$ nos pontos de $\{(s,\boldsymbol{x}): s\in {]0,t[}, \boldsymbol{x}\in \partial\omega_s\}$ (justifique estas afirmações!).
Considerando o campo $G:\overline{U_t}\to \mathbb{R}^4$ definido por $G(t,\boldsymbol{x})=f(t,\boldsymbol{x}) (1, v(t,\boldsymbol{x}))$ verificamos que $G(0,\boldsymbol{x})\cdot\nu=-f(0,\boldsymbol{x})$ sobre $\{0\}\times\omega_0$, $G(t,\boldsymbol{x})\cdot\nu=f(t,\boldsymbol{x})$ sobre $\{t\}\times\omega_t$ e que $G(t,\boldsymbol{x})\cdot\nu=0$ sobre $\{(s,\boldsymbol{x}): s\in {]0,t[}, \boldsymbol{x}\in \partial\omega_s\}$. O teorema da divergência permite então escrever \begin{align*}\iiiint_{U_t} \div_{(s,\boldsymbol{x})} G(s,\boldsymbol{x}) \, ds\, d\boldsymbol{x} & = \iiint_{\partial U_t}G\cdot\nu\, dV_3 \\ & = \iiint_{\omega_t} f(t,\boldsymbol{x}) \, d\boldsymbol{x} - \iiint_{\omega_0} f(0,\boldsymbol{x}) \, d\boldsymbol{x} \end{align*} em que $\div_{(s,\boldsymbol{x})}$ designa o operador divergência em $\mathbb{R}^4$. Usando o teorema de Fubini para simplificar o lado esquerdo da igualdade anterior obtém-se \begin{align*}\iiiint_{U_t} \div_{(s,\boldsymbol{x})} G(s,\boldsymbol{x}) \, ds\, d\boldsymbol{x} & =\iiiint_{U_t} \frac{\partial f}{\partial s}+\div_{\boldsymbol{x}}(f(s,\boldsymbol{x})v(s,\boldsymbol{x}))\, ds\, d\boldsymbol{x} \\ & = \int_0^t \left(\iiint_{\omega_s}\frac{\partial f}{\partial s}+\div_{\boldsymbol{x}}(f(s,\boldsymbol{x})v(s,\boldsymbol{x})) d\boldsymbol{x}\right) ds \end{align*} em que $\div_{\boldsymbol{x}}$ designa o operador divergência em $\mathbb{R}^3$.
Nitidamente o argumento anterior também se estende a todo o $t\in I$ obtendo-se \[ \iiint_{\omega_t} f(t,\boldsymbol{x}) \, d\boldsymbol{x} - \iiint_{\omega_0} f(0,\boldsymbol{x}) \, d\boldsymbol{x}=\int_0^t \left(\iiint_{\omega_s}\frac{\partial f}{\partial s}+\div_{\boldsymbol{x}}(f(s,\boldsymbol{x})v(s,\boldsymbol{x})) d\boldsymbol{x}\right) ds .\] Por aplicação do teorema fundamental do cálculo decorre da igualdade anterior a igualdade do teorema de Liouville que pretendíamos obter \[\frac{d}{dt} \iiint_{\omega_t} f(t,\boldsymbol{x}) \, d\boldsymbol{x} = \iiint_{\omega_t}\frac{\partial f}{\partial t}+\div_{\boldsymbol{x}}(f(t,\boldsymbol{x})v(t,\boldsymbol{x})) d\boldsymbol{x}. \] Fim de exemplo.
Exercício. Deduza a forma diferencial da lei de conservação da massa \[\frac{\partial \rho}{\partial t}+\div_{\boldsymbol{x}}(\rho(t,\boldsymbol{x})v(t,\boldsymbol{x}))=0.\]
Exemplo (Fórmulas de Green). As fórmulas de Green são um corolário do teorema da divergência que se obtêm quando se considera que o campo vectorial $F$ tem a forma particular de um produto de um campo escalar por um gradiente. Mais precisamente seja $U\subset \mathbb{R}^n$ um domínio regular com normal unitária exterior $\nu$ e $\phi,\psi:\overline{U}\to\mathbb{R}$ duas funções de classe $C^2(\overline{U})$. Então \[\operatorname{div}(\phi\nabla \psi) = \nabla \phi\cdot \nabla \psi + \phi \Delta \psi\] em que $\Delta$ é um operador diferencial de segunda ordem, o laplaciano, definido por $\Delta=\sum_{i=1}^n \frac{\partial^2}{\partial x_i^2}$.
Então, tomando $F=\phi\nabla \psi$ na igualdade do teorema da divergência e notando que o produto interno do gradiente com $\nu$ é a derivada dirigida segundo $\nu$, obtém-se a primeira fórmula de Green \begin{equation}\int_U \nabla \phi \cdot \nabla \psi + \phi \Delta \psi \, d\boldsymbol{x} = \int_{\partial U} \phi \frac{\partial \psi}{\partial \nu} \, dV_{n-1}. \label{eq:pfG}\end{equation} Trocando o papel de $\phi$ e $\psi$ na fórmula anterior obtém-se \begin{equation}\int_U \nabla \psi \cdot \nabla \phi + \psi \Delta \phi \, d\boldsymbol{x} = \int_{\partial U} \psi \frac{\partial \phi}{\partial \nu} \, dV_{n-1}. \label{eq:sfG}\end{equation} Subtraindo membro a membro as equações ($\ref{eq:pfG}, \ref{eq:sfG}$) obtém-se a segunda fórmula de Green \begin{equation}\int_U \phi \Delta \psi -\psi \Delta \phi \, d\boldsymbol{x} = \int_{\partial U} \phi \frac{\partial \psi}{\partial \nu} - \psi \frac{\partial \phi}{\partial \nu} \, dV_{n-1}. \label{eq:fG}\end{equation}
Exemplo (solução fundamental da equação de Laplace). Seja $\psi:\mathbb{R}^n\setminus\{\boldsymbol{0}\}\to \mathbb{R}$ definida por \[\psi(\boldsymbol{x})=\begin{cases}\log \|\boldsymbol{x}\|, & \text{se } n=2,\\ \frac{1}{2-n}\|\boldsymbol{x}\|^{2-n}, & \text{se } n\gt 2.\end{cases}\] Estas funções são soluções radiais de $\Delta \psi=0$ em $\mathbb{R}^n\setminus\{\boldsymbol{0}\}$. Com efeito, usando $\frac{\partial}{\partial x_i} (\|\boldsymbol x\|)=\frac{x_i}{\|\boldsymbol x\|}$ e o teorema de derivação da função composta obtém-se \begin{align*}\frac{\partial\psi}{\partial x_ i }&= \frac{x_i}{\|\boldsymbol{x}\|^n},\\ \frac{\partial^2\psi}{\partial x_ i ^2}&= \frac{\|\boldsymbol{x}\|^n-nx_i^2 \|\boldsymbol{x}\|^{n-2}}{\|\boldsymbol{x}\|^{2n}},\end{align*} donde $\Delta \psi=0$.
Seja $\phi:\mathbb{R}^n\to\mathbb{R}$ uma função de classe $C^2(\mathbb{R}^n)$ para a qual exista um bola $B$ tal que $\phi=0$ em $\mathbb{R}^n\setminus \overline{B}$. Vamos mostrar que existe $c_n\in\mathbb{R}$ tal que para qualquer $\boldsymbol{x}_0\in U$ temos \[\lim_{\epsilon\downarrow 0}\int_{B\setminus B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)}\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0)\Delta \phi (\boldsymbol{x})\, d\boldsymbol{x}= c_n \phi(\boldsymbol{x}_0).\]
Vamos usar ($\ref{eq:fG}$) com $U$ substituído por $B\setminus B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)$ e $\psi(\boldsymbol{x})$ susbtituído por $\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0)$ para obter, notando que sobre $\partial B$ temos $\phi$ e $\nabla \phi$ nulas, \[\int_{B\setminus B_{\epsilon(\boldsymbol{x}_0)}}\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0)\Delta \phi (\boldsymbol{x})\, d\boldsymbol{x}=-\int_{\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)}\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0)\frac{\partial \phi}{\partial \nu}-\phi(\boldsymbol{x})\frac{\partial}{\partial \nu}\left(\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0)\right)\, dV_{n-1}\] em que $\nu$ é a normal unitária exterior a $\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)$ (e daí o sinal $-$ no segundo membro).
Temos \[\left|\int_{\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)}\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0)\frac{\partial \phi}{\partial \nu}\, dV_{n-1}\right|\leq \begin{cases} M \omega_2 \epsilon |\log \epsilon|, & \text{ se } n=2, \\ M \omega_n \epsilon^{n-1} \epsilon^{2-n} = M\omega_n\epsilon, &\text { se } n\gt 2 ,\end{cases} \] em que $M\gt 0$ é um majorante de $\|\nabla \phi\|$ em $\overline{B}$ e $\omega_n$ é o volume $n-1$ dimensional da fronteira da bola de raio $1$. Em qualquer dimensão temos então \[\lim_{\epsilon\downarrow 0}\int_{\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)}\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0)\frac{\partial \phi}{\partial \nu}\, dV_{n-1} =0.\]
Por outro lado, usando que $\frac{\partial}{\partial \nu}(\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0))$ sobre $\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)$ vale $\epsilon^{1-n}$, \[ \begin{split}&\left|\omega_n\phi(\boldsymbol{x}_0) - \int_{\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)} \phi(\boldsymbol{x})\frac{\partial}{\partial \nu}(\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0))\, dV_{n-1} \right| \\ & = \left|\frac{1}{{\epsilon}^{n-1}}\int_{\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)} \phi(\boldsymbol{x}_0) \, dV_{n-1} - \int_{\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)} \phi(\boldsymbol{x})\frac{\partial}{\partial \nu}(\psi(\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0))\, dV_{n-1} \right| \\ & \leq \omega_n \max_{\boldsymbol{x}\in\partial B_\epsilon(\boldsymbol{x}_0)} |\phi(\boldsymbol{x})-\phi(\boldsymbol{x}_0)|\end{split}\] Usando a continuidade de $\phi$ obtemos então o resultado pretendido com $c_n=\omega_n$.
A função $\frac{1}{\omega_n}\psi$ é conhecida por solução fundamental do operador $\Delta$ justamente devido a esta propriedade.
Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 20/05/2020 17:42:46.