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Cálculo Diferencial e Integral II

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Teorema da divergência

O teorema da divergência estabelece a validade de uma igualdade em que é um aberto limitado de com uma fronteira suficientemente regular, , onde está definida, excepto possivelmente num conjunto irrelevante do ponto de vista de volumes dimensionais, uma normal unitária exterior e é uma função e Uma das nossas dificuldades será entender para que abertos limitados vale o resultado. Derivar a validade de () numa situação particularmente simples será um primeiro passo nesse sentido. Iremos no entanto evitar lidar com os aspectos mais tecnicamente delicados da questão.

Exemplo. Seja um aberto limitado com fronteira (excepto possivelmente num conjunto desprezável do ponto de vista de integração dimensional, por exemplo poderia ser um intervalo em ). Seja uma função de classe . Definimos e consideramos de classe , . Com estas definições a igualdade () toma a forma

Verificando o teorema da divergência
Verificando o teorema da divergência

Calculando os dois lados da igualdade temos para o integral -dimensional, usando o teorema de Fubini, Para lidar com o integral dimensional sobre notamos que em que Nos pontos de temos . Nos pontos de onde estiver definida uma normal unitária temos . Sobre temos sendo o elemento de volume dimensional em . Assim estabelecendo a igualdade do teorema da divergência neste caso particular. Fim de exemplo.

A generalização a outras regiões menos triviais pode fazer-se notando que:

  • no exemplo anterior também podíamos ter a região limitada inferiormente na direcção da -ésima coordenada pelo gráfico de uma função e não pelo hiperplano definido por ,
  • o papel desempenhado pela -ésima coordenada podia ser desempenhado por uma qualquer coordenada,
  • podemos lidar com uniões de tais regiões usando uma versão -dimensional do que já fizemos para o teorema de Green, em que o papel desempenhado por caminhos percorridos em sentidos opostos que levam ao cancelamento de integrais de linha na intersecção de duas regiões contíguas, é agora desempenhado por fluxos em sentidos opostos através de hipersuperfícies que separam duas regiões contíguas.
  • eventualmente também precisaremos de argumentos de aproximação do aberto por subconjuntos abertos limitados aonde é mais fácil estabelecer a igualdade do teorema da divergência e daí passando ao limite sob condições apropriadas.
  • podemos lidar com campos gerais se estabelecermos o resultado para campos em que todas as coordenadas menos uma são não nulas.

Definição (domínio regular). Designaremos como domínios regulares os abertos limitados com fronteira suficientemente regular para os quais os quais a estratégia atrás delineada permite estabelecer a validade da igualdade ().

Exemplos. Não deverá ter dificuldades em convencer-se que um intervalo limitado de , uma bola ou outros conjuntos que aparecerão nos exemplos são domínios regulares. No caso de uma bola poderá ser conveniente, para estabelecer o análogo de (), aproximar a bola pelas suas intersecções com cilindros de raio ligeiramente menor e com eixo passando pelo centro da bola e direcção do eixo dos , e depois fazer o raio do cilindro tender para o raio da bola.

Teorema (da divergência ou de Gauss). Sejam um domínio regular em , com fronteira onde está definida uma normal unitária exterior e uma função e . Então vale

Aplicações do teorema da divergência

Exercício (interpretação do operador divergência). Para compreender o significado do operador divergência convém notar que sendo um aberto e uma função de classe podemos recuperar a à custa de um limite envolvendo o fluxo de através da fronteira de domínios reescalados em torno do ponto onde pretendemos o valor da divergência. Mais concretamente seja e consideremos as bolas para suficientemente pequeno e o limite Use o teorema da divergência para verificar que o limite existe e é igual .

Exemplo (Ângulo sólido). Dado um subconjunto de definimos o seu ângulo sólido relativamente a como a área do subconjunto de definido pela sua intersecção com todas as semirectas originárias em que intersectam , se essa área estiver definida. Vamos exprimir o ângulo sólido de uma superfície suficientemente regular e com normal unitária contínua cujo produto interno com o vector posição é positivo em todos os pontos de (tal garante que uma semirecta com origem em se intersectar só o faz num ponto), como um fluxo de um dado campo através da superfície, especificamente consideramos Abreviando temos , pelo que , donde .

Ângulo sólido
Ângulo sólido

Supondo que a distância de à origem é maior que considere-se a união de todos os segmentos de recta contidos em semi-rectas com origem em e unindo um ponto de a um ponto de . Temos em que e em que é formada por pontos de que não estão em . Se for suficientemente regular de maneira a aí estar definido um fluxo no sentido da normal unitária exterior, verificamos com facilidade que aí é ortogonal ao campo. Sob tais hipóteses o teorema da divergência permite escrever Verifica-se facilmente que o integral sobre é igual a que, por sua vez, é igual ao simétrico do ângulo sólido de , o que permite concluir. Fim de exemplo.

Exemplo. (Mecânica dos meios contínuos, leis de conservação e um teorema de Liouville)

Uma possibilidade para descrever sistemas de partículas e a sua evolução consiste em considerar aplicações em que é um intervalo aberto, , é um aberto, e é uma aplicação suficientemente regular, por exemplo , convencionando-se que corresponde à posição da particula no instante , e que .

Ilustração do teorema de Liouville
Teorema de Liouville

Para efeitos deste exemplo convencionamos também que, para cada , as aplicações têm uma inversa diferenciável (que será de classe e que terá sempre determinante da matriz jacobiana positivo; justifique estas afirmações!).

A descrição de várias grandezas nestes sistemas pode ser feita tanto em termos das coordenadas espaciais como das coordenadas materiais . Tomamos como exemplo a densidade (em coordenadas espaciais) ou (em coordenadas materiais) para a qual haverá duas possíveis descrições relacionadas por As várias grandezas que se estudam são restringidas por leis de conservação. No caso da densidade temos a lei da conservação da massa que pode ser formulada como afirmando que a massa de um conjunto de partículas permanece invariante, isto é, sendo com um domínio regular e temos Consideramos também a  velocidade das partículas do sistema definia via

O teorema de Liouville a que nos referimos neste exemplo trata da comutação da derivada com o integral em situações similares ao lado esquerdo de com substituído por uma outra função de e . Vamos usar o teorema da divergência para derivá-lo.

Seja então uma função de classe e . Para consideramos o subconjunto de definido por . é um domínio regular em com fronteira A normal unitária exterior a é em , em e ortogonal a nos pontos de (justifique estas afirmações!).

Considerando o campo definido por verificamos que sobre , sobre e que sobre . O teorema da divergência permite então escrever em que designa o operador divergência em . Usando o teorema de Fubini para simplificar o lado esquerdo da igualdade anterior obtém-se em que designa o operador divergência em .

Nitidamente o argumento anterior também se estende a todo o obtendo-se Por aplicação do teorema fundamental do cálculo decorre da igualdade anterior a igualdade do teorema de Liouville que pretendíamos obter Fim de exemplo.

Exercício. Deduza a forma diferencial da lei de conservação da massa

Exemplo (Fórmulas de Green). As fórmulas de Green são um corolário do teorema da divergência que se obtêm quando se considera que o campo vectorial tem a forma particular de um produto de um campo escalar por um gradiente. Mais precisamente seja um domínio regular com normal unitária exterior e duas funções de classe . Então em que é um operador diferencial de segunda ordem, o laplaciano, definido por .

Então, tomando na igualdade do teorema da divergência e notando que o produto interno do gradiente com é a derivada dirigida segundo , obtém-se a primeira fórmula de Green Trocando o papel de e na fórmula anterior obtém-se Subtraindo membro a membro as equações () obtém-se a segunda fórmula de Green 

Exemplo (solução fundamental da equação de Laplace). Seja definida por Estas funções são soluções radiais de em . Com efeito, usando e o teorema de derivação da função composta obtém-se donde .

Seja uma função de classe para a qual exista um bola tal que em . Vamos mostrar que existe tal que para qualquer temos

Vamos usar () com substituído por e susbtituído por para obter, notando que sobre temos e nulas, em que é a normal unitária exterior a (e daí o sinal no segundo membro).

Temos em que é um majorante de em e é o volume dimensional da fronteira da bola de raio . Em qualquer dimensão temos então

Por outro lado, usando que sobre vale , Usando a continuidade de obtemos então o resultado pretendido com .

A função é conhecida por solução fundamental do operador justamente devido a esta propriedade.

 


Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 20/05/2020 17:42:46.